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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

CAUSA ÚNICA


Com o relutante consentimento paterno, saí para me encontrar com Jitendra, já em Benares, no eremitério. À minha chegada, o jovem chefe, Swâmi Dayananda, cumprimentou‑me cordialmente. Alto e magro, de aspecto pensativo, ele me impressionou de modo favorável. Sua bela face tinha a serenidade de um Buda.
Foi agradável encontrar, em minha nova residência, um sótão onde eu dava um jeito de passar as madrugadas e as manhãs. Os membros do áshram, conhecendo pouco de práticas meditativas, pensavam que eu deveria empregar meu tempo inteiro em tarefas de organização. Elogia­ram‑me por meu trabalho, às tardes, no escritório.
‑ Não procure capturar Deus tão depressa! ‑ Esta zombaria de um residente do eremitério, acompanhou uma de minhas partidas mati­nais para o sótão. Dirigi‑me a Dayananda, ocupado em seu pequeno santuário com vista para o Ganges.
‑ Swâmijí, não entendo o que se exige de mim, aqui. Busco a percepção direta de Deus. Sem Ele, não me posso satisfazer com filia­ção a um grupo ou execução de boas obras.
O eclesiástico de túnica alaranjada deu‑me uma palmadinha afetuo­sa. Arremedando uma censura, repreendeu alguns discípulos que esta­vam próximos: Não aborreçam Mukunda. Ele aprenderá nossos costu­mes.
Cortesmente, ocultei minhas dúvidas, Os estudantes deixaram a sala, sem se mostrarem visivelmente humilhados pela reprimenda. Daya­nanda tinha ainda outras palavras para mim:
_ Mukunda, vejo que seu pai lhe envia dinheiro regularmente. Devolva‑o, por favor; você não necessita dele aqui. Uma segunda regra para sua disciplina refere‑se à comida. Mesmo que sinta fome, não o diga.
Se a privação de alimentos cintilava em meus olhos, não o sei. Que eu estava com fome, sei‑o perfeitamente. A primeira refeição no eremi­tério ocorria invariavelmente ao meio‑dia. Em minha casa, eu fora acos­tumado a tomar um substancioso lanche às nove da manhã.
As três horas de intervalo tornavam‑se diariamente mais interminá­veis. Passado era o tempo em que, em Calcutá, eu podia repreender a cozinheira por um atraso de dez minutos. Agora eu tentava controlar meu apetite; completei um jejum de vinte e quatro horas. Com deleite redobrado, aguardei o meio‑dia seguinte.
‑ O trem de Dayanândají está atrasado; não comeremos antes de sua chegada. ‑ Jitendra trouxe‑me estas notícias desoladoras. Num ges­to de amável acolhida ao swâmi, cuja ausência se prolongara por duas semanas, prepararam‑se muitas iguarias. No ar se difundia um aroma apetitoso; só este me sendo oferecido, que outra coisa poderia eu engo­lir senão meu orgulho pelo jejum de ontem?
‑ Deus Senhor, apressa o trem! ‑ O Provedor Divino, pensei, dificilmente poderia ser incluído na proibição com que Dayananda me silenciara. A atenção de Deus concentrava‑se, entretanto, em algum ou­tro lugar; o relógio, em andar penoso, cobria as horas. A escuridão des­cia quando nosso dirigente entrou pela porta. Cumprimentei‑o com trans­parente alegria.
‑ Dayanândají tomará banho e meditará antes de podermos servir a refeição. ‑ Jitendra aproximou‑se de mim outra vez como pássaro de mau agouro.
Eu estava à beira de um colapso. Meu jovem estômago, desabitua­do à privação, protestava com vigor corrosivo. Imagens que eu vira, de vítimas da fome, repassavam diante de mim como almas penadas.
“O próximo falecimento por inanição em Benares é previsto para este eremitério, e agora mesmo”, pensei. A ameaça condenatória foi sus­tada às vinte e uma horas. Enfim, soava a convocação para a ambrosia! Em minha memória, permanece nítida aquela refeição noturna, como uma das horas perfeitas de minha vida.
A absorção intensa não me impediu de observar que Dayananda comia, com o espírito ausente. Ele estava, evidentemente, acima de meus prazeres grosseiros.
‑ Swâmijí, o senhor não tinha fome? ‑ Venturosamente saciado, eu me encontrava a sós com o dirigente em sua sala de estudos.
‑ 01), sim ‑ respondeu ele. ‑ Passei os últimos quatro dias sem comer nem beber. Nunca me alimento nos trens, saturados, como estão, de vibrações heterogêneas de gente mundana. Observo rigorosamente as regras shástricas dos monges de minha Ordem. Certos pro­blemas nossos, de organização de nosso trabalho, permanecem em mi­nha mente. Esta noite, negligenciei meu jantar. Por que a pressa? Ama­nhã tratarei de fazer uma refeição mais completa.
Minha vergonha era tanta que me sufocou. Mas o dia de tortura que eu passara não fora tão facilmente esquecido; arrisquei outro co­mentário:
‑ Swâmijí, sinto‑me embaraçado em seguir suas instruções. Su­pondo que eu nunca peça e que ninguém me dê comida, morrerei de inanição.
‑ Pois então morra! ‑ Este conselho alarmante explodiu no ar. ‑ Morra se for preciso, Mukunda! jamais acredite que você vive pelo poder do alimento e não pelo poder de Deus! Ele, o criador de toda espécie de nutrição, Ele, que conferiu o apetite, providenciará os víve­res para Seu devoto. Não pense que é o arroz que o sustenta, nem que o dinheiro ou os homens garantem sua subsistência. Poderiam eles aju­dá‑lo se Deus lhe retirasse o sopro da vida? Eles são apenas instrumen­tos divinos. É por alguma habilidade sua que a comida digere em seu estômago? Use a espada de seu discernimento, Mukunda! Corte os elos dos agentes intermediários, e perceba a Causa única!
Senti estas incisivas palavras me penetrarem até a medula dos os­sos. Desvanecia‑se uma secular ilusão de que os imperativos do corpo suplantam os da alma. Naquela hora e lugar, saboreei a integral suficiên­cia do Espírito. Em quantas cidades estrangeiras, em minha vida poste­rior de viagens incessantes, tive ocasião de pôr à prova a serventia des­ta lição, aprendida num eremitério de Benares!


Fonte: AUTOBIOGRAFIA DE UM IOGUE - PARAMAHANSA YOGANANDA

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